José Carlos Vaz*
Aproximar produtor rural de investidores é um antigo ideal da política agrícola. O agronegócio brasileiro, com a expressividade de seus números e o potencial de negócios que possui, pode ser o grande alavancador do mercado de capitais no país, e por meio dele obter recursos para a produção.
Contudo, essa aproximação ainda não ocorreu de acordo com as expectativas faz tempo configuradas, e entre as principais razões para isso estão:
- Os potenciais investidores desconhecem o risco do produtor (capacidade de geração de caixa, patrimônio, dívidas e demandas judiciais e fiscais, capacidade técnica e gerencial, eficiência e regularidade produtiva) e não têm informações sobre o mercado em que ele atua.
- Eles também não conseguem aferir o risco jurídico envolvido no negócio específico e têm percepção de insegurança jurídica para investir e poder atuar no Brasil, o que leva a frustração ou encarecimento de estruturas negociais.
De fato, são expressivos e amplos o desconhecimento e os ruídos de comunicação sobre o perfil de risco, o nível de adimplência, e a disposição de pagar dos produtores rurais, o que não se coaduna com o que enfatizamos em artigo publicado em janeiro de 2020:
- A empresa fora da porteira que queira ter sucesso e perseverar deve dispor de mecanismos de aferição e gerenciamento do risco dos produtores rurais que são seus clientes, fornecedores ou parceiro.
- O resultado de uma cadeia de agronegócios como a brasileira, ao longo do tempo, é positivo, desde que se saiba como atravessar eventuais crises. Se o cliente produtor rural tiver renda, ou reservas de renda (capitalização), a probabilidade de não honrar seus compromissos é pequena, ou seja, seu risco é pequeno.
Crédito
É comum confundir-se “crédito” com financiamento, empréstimo ou relação contratual, mas, como explica Fran Martins, crédito é “a confiança que uma pessoa inspira a outra de cumprir, no futuro, obrigação atualmente assumida”.
Crédito é, pois, uma percepção de confiança, decorrente de uma análise de risco, a qual, nos bons negócios, está fundada em dados, projeções, metodologias.
Contudo, boa parte dos possíveis financiadores dos produtores, ou estruturadores de operações de captação junto a investidores, e até mesmo os produtores, ainda confundem bom risco de crédito com existência de garantias suficientes, o que é um engano.
A necessidade de executar um devedor quase sempre é conseqüência de estudo ruim e/ou falta de gestão e/ou habilidade negocial, pois, para assegurar o bom retorno dos recursos emprestados, é fundamental conhecer as características e riscos da atividade do tomador dos recursos, e acompanhar o fluxo das suas receitas e o seu ciclo operacional (é preciso o que chamamos no nosso mencionado artigo de “núcleo de inteligência”).
Risco
Com tais práticas, é possível antecipar problemas de pagamento e eventualmente oferecer soluções de reperfilamento, preservando assim o relacionamento e a rentabilidade pretendida.
Devedores com renda suficiente arcam com seus compromissos, independente das garantias vinculadas ou do patrimônio alcançável. Os produtores com bom perfil de gestão, risco e eficiência conseguem gerar receita ou liquidez mesmo quando sofrem perdas inesperadas de produção ou preço.
A ênfase em garantias, e nem tanto na aferição do risco a ser tomado, predomina mesmo na recente e ampla alteração na legislação que trata de relações de crédito com produtores rurais, a chamada “MP do Agro”, recentemente convertida na lei nº 13.986, de 7 de abril de 2020, que tem sido chamada por alguns advogados agraristas de “MP do credor do Agro”.
De fato, com a configuração da legislação vigente, mesmo após o advento da MP do Agro, ainda estamos pensando, para o apoio financeiro às atividades produtivas rurais, em um modelo de crédito “nos moldes bancários” e fundado em garantias, e mesmo quando o credor não é um banco.
Isso talvez se dê por conta dos setores de crédito das agroempresas ter muitos ex-bancários, ou ainda porque mesmo quando uma trading ou um fornecedor de insumos dá crédito ao produtor rural, tem como lastro um crédito bancário de capital de giro, uma captação no mercado de capitais ou um aporte financeiro da matriz (que para tal valeu-se de crédito bancário ou mercado de capitais).
As principais soluções não parecem ser a de exigir mais garantias (que só faz aumentar o custo operacional da estrutura), e a de prover capacidade arbitrária de expropriação ao credor (o que afastará bons produtores), mas as de viabilizar mais transparência por parte dos produtores e de dar a estes mais acesso aos originadores de capital.
Produção Agropecuária
O Brasil sabidamente tem um mercado bancário concentrado, mas também tem um grupo restrito de grandes agroempresas (em sua maioria multinacionais), que exerce amplo domínio do mercado “fora da porteira”. Isso acarreta que o produtor rural, que carrega a parte maior dos riscos da atividade, acaba tendo “sócios indiretos” nas suas receitas (e não nas suas perdas).
Assim, apenas trazer novos agentes (fintechs, cooperativas de crédito, traders) para financiar não melhorará o volume e o custo do dinheiro para o campo, se não se der mais poder de transação ao produtor rural, e isso somente ocorrerá com a redução da intermediação entre o tomador de recursos (o produtor) e o investidor, em especial os de menor porte (de varejo), os institucionais (fundos de aposentadoria, por exemplo) e os de fora do País.
Basta comparar a taxa que um banco paga para quem aplica em LCA e quanto cobra de um produtor em uma operação de crédito rural, para ver que a aproximação mais direta entre investidor e produtor trará vantagens recíprocas.
Como afirmado, para ter acesso a mais recursos, principalmente externos, em boas condições, além da melhoria da situação macroeconômica do país, o agronegócio brasileiro precisará gerar percepção de risco aceitável para os investidores, o que exige, da parte dos produtores, “disclosure” (transparência das informações), “accountability” (contas com base nas melhores práticas contábeis e de auditoria) e “compliance” (conformidade na observância às regras). E, da parte do Estado brasileiro, segurança jurídica (e desburocratização).
Para obter-se isso, seria importante que:
- O produtor rural efetuasse a segregação da sua contabilidade, do seu patrimônio e do seu fluxo financeiro dos do seu empreendimento.
- Surgisse número significativo de pequenas e médias empresas, detentoras de expertise, credibilidade e independência, para prestar apoio neutro aos produtores e investidores envolvidos em negócios de crédito, em atividades de rating, avaliação, auditoria, fiscalização, cobranças e execuções, compra de dívidas, compra de terras recebidas por dívidas, negociação de contratos, arbitramento e mediação, etc.
- Fosse desenvolvido um mecanismo público de proteção contra a volatilidade da renda do produtor rural ao longo de diversos exercícios.
- Os bancos públicos atuassem como formadores de carteiras de crédito para produtores rurais e suas cooperativas, que seriam parcialmente transferidas a investidores, com mecanismos de compartilhamento de risco como stop loss, first loss, etc.
- Os endossantes de CPR, CIR, LCA, CDCA e CRA pudessem criar obrigações para si, inclusive estipulando condições, pelas quais responderiam perante o credor, complementares às do emitente do título endossado, e que não poderiam ser a este exigidas.
- Fosse criada a central de registro cartorário, que estava prevista na proposta do relator da MP do Agro, mas não foi incluída no projeto de conversão aprovado pela Câmara e remetido ao Senado. Essa central será um grande passo para a criação de um ambiente seguro e neutro de negócios, sem domínio pelo sistema financeiro. E sua ausência enfraquece a operacionalidade do patrimônio rural em afetação e cria insegurança jurídica para a CPR e as cédulas de crédito não registradas em cartório.
- Fosse recuperada a concepção da Cédula Imobiliária Rural que estava no Projeto de Lei 2.053/2015.
*José Carlos Vaz é palestrante da RCA Educação, com o tema ¨Agronegócio: indústria a céu aberto¨. Tem experiência de 35 anos no agronegócio, tendo atuado no Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento como ministro interino, secretário executivo e secretário de política agrícola. Também foi presidente dos conselhos de administração da Embrapa e da Conab, e exerceu funções em todas as áreas relativas aos negócios rurais e agroindustriais do Banco do Brasil, onde foi diretor de agronegócios. Atualmente é advogado e consultor jurídico em Brasília, com ênfase em direito agrário, política agrícola, crédito rural, contratos e títulos do agronegócio. É mestre em direito constitucional, especialista em direito empresarial e contratos e membro da União Brasileira dos Agraristas Universitários e da comissão de direito do agronegócio da OAB-DF.